Capital Inicial

Tive uma infância bem normal, sem tragédias ou grandes traumas. Foi feliz e… modesta. A gente andava a pé. Viagens eram raras e de ônibus e pra cidades vizinhas. Os trajetos eram conhecidos: Vila Alegria, por Independência ou pela Barrinha; e Boa Vista do Buricá. Eram onde viviam os meus avós. Distâncias curtas para demoradas viagens em estradas de chão e pedra.

Eu voava na imaginação ouvindo algumas colegas contando sobre aviões, navios, metrô, avenidas, grandes centros, Disneylândia e praias.

Então, aos 11 anos, tive a minha primeira experiência em viagens longas. Eu e duas das minhas irmãs mais velhas fomos para uma Colônia de Férias na Praia do Cassino. Era verão, calor e depois de 12 horas viajando, eu estava na praia! Uaaau, que maravilha. Dormir em beliche era uma festa. Banheiro coletivo, algo estranho. Mas foi uma experiência inesquecível ver o mar, sentir a brisa forte (depois descobri que se chamava nordestão), caminhar por aquela vasta extensão de areia e poder olhar para um horizonte sem fim. A Colonia ficava a léguas da praia. Algo como 12 quadras. Mas quem se importava? Conheci muita gente e senti meu coração bater mais forte por um menino da minha idade. Ele jamais soube disso, mas reapareceu na minha vida 15 anos depois. Assunto para o post n. 15.

Bueno, a segunda viagem mais importante da minha adolescência foi para conhecer a capital Porto Alegre. Aos 14 anos, eu tinha duas irmãs morando lá. Uma delas estava recém-casada e o marido havia conseguido uma bolsa de estudos para fazer mestrado na UFRGS. Moravam na Av. Bento Gonçalves. A outra minha irmã era freira e morava no Colégio Navegantes. A viagem de ida foi no ônibus da madrugada, porque chega de manhã e a gente pode aproveitar o dia. Quem consegue dormir em ônibus? Naquela época, eu não. Ainda mais com toda a ansiedade de chegar, a adrenalina pelo medo da cidade grande. – Presta a atenção por onde anda. – Veja se não está sendo seguida. – Segura bem a bolsa. – Não mostra dinheiro na rua. Toda Porto Alegre sabia que eu era do interior. Mas eu não estava só. Minha terceira irmã estava comigo.

Parênteses: eu sou a filha caçula de uma grande família. Entre minhas quatro irmãs e eu, nasceram três lindos meninos.

Uma noite sem dormir e eu louca para desbravar a cidade. Minha irmã mais experiente me levou para a Rua da Praia, no centro, e arredores. Que overdose de sons, imagens, movimento, gente, cheiros, sentimentos. Loteria, o último número. Promoção, só hoje. Venha ver as novidades que temos para esta estação. Raspadiiinhaaa. Torrone, amiga? Moça, tem um trocadinho? Guria, ajuda por favor essa mãe que tem os filhos pra criar. Perdi o emprego. Não? Compra um par de meias, vizinha! E os homens vestidos com placas “Compro Ouro”. Cheiro de pastel, de cola, de roupa nova, de esgoto, de pão fresco, de mofo, de café, de perfume barato, de batata frita, de lixo. Vitrine, coisas, gente, poste, placa, banco, sapatos, confeitaria, aviamentos, relógios. Salto alto, mendigo, executivo, luxo, lixo, teias de aranha, prédios decadentes, prédios novos, modernos, livraria, sebo, escada rolante, cinema, ônibus, ônibus, ônibus, gente, gente, gente. Caminha, não para. Bolsa pra frente. Tudo era perto demais para os meus olhos de topo de árvore, de por do sol. Tudo era claro demais, cimento demais, vidro demais. Deslumbramento, medo, cansaço, curiosidade. Vamos embora. Vamos pegar um ônibus na Salgado (Filho).

Curva aqui, curva ali, velocidade, meus olhos se fechando, a retina gasta, cabeça cansada. Dormi. apaguei escorada sobre meus braços apoiados no encosto da frente. Sonhei que estava no pátio de casa, que fazia silêncio de entardecer. E fui acordada na Bento, pela minha irmã.

Que bom estar em um refúgio, em segurança, protegida pela família. Logo chegou a hora de dormir e eu me deitei pensando na intensidade do dia. Fechei os olhos e passei a ouvir os ruídos da rua. Não cigarras, nem corujas, mas o abrir e fechar das portas dos ônibus, sirenes de ambulância, de polícia, freadas, buzinas, roncos de motor, batidas de porta, gente conversando, bêbados cantando. Eram duas, eram três, eram cinco da manhã quando eu, vencida pelo cansaço, adormeci.

Acordei as 8 horas com o som de colher na xícara. Eram minhas irmãs preparando o cafe porque logo sairíamos para o Navegantes. – Quero ir pra casa, pensei.

Tomamos um ônibus que não chegava nunca. Curva aqui, curva ali, velocidade, freada, abre porta, fecha porta. – Seeegueee!, gritava o cobrador. Duas noites quase nada dormidas, cheiros, sons, imagens, leite, se misturaram no meu estômago e eu fiquei verde. – Puxa a cordinha que eu vou vomitar!  Minhas irmãs não ouviram. O ônibus parou, alguém desceu e eu desci junto. E abraçada numa das únicas árvores da calçada eu devolvi a cidade que não me fez bem. Logo apareceram minhas irmãs e caminhamos juntas até o Navegantes. Bendito seja o chá de boldo que me fez respeitar Porto Alegre.

Era raro estar com minha irmã mais velha, e sempre bom. Conversamos algumas horas, visitamos o colégio, o jardim, a capela, o quarto dela; fizemos lanche no refeitório das freiras  – um privilégio para poucos.

No fim da tarde já estávamos na rodoviária, prontas pra voltar pro interior onde a gente vê o manto das estrelas, ouve o bem-te-vi quando amanhece, conversa com os vizinhos. Lugar onde, às vezes, ainda falta luz mas tem vaga-lume e a gente senta em roda para conversar. E quando acaba o assunto, um violão faz serenata ao luar. Onde o silêncio da noite traz a paz que embala o sono.

O ônibus chegou. Abraço minhas irmãs de quem sentirei saudade. Sorrio pra mim e me despeço da capital. Deu pra ti baixo astral! Vou pra Três de Maio, tchau!

 

P.S. Nada é para sempre. Hoje eu sigo a fan page Eu Amo Porto Alegre!

Argentina

Argentina acabou de ser desclassificada da Copa do Mundo. Mas que jogo! França jogou muito. Argentina jogou o que pode. Não foi um jogo. Foi um tango. Dramático. Com esperança até o final. Passei nervosismos e ansiedades, porque meu coração não bate, ele late. Mi corazón late no compasso de um tango, por um bem querer que mora do outro lado do rio. Eu sou Brasil e sou Argentina (e por raiz um pouco Itália e Alemanha também, mas isso fica para outro post).

A Argentina saiu do mundial, mas segue com Mafalda, Piazzolla, Jorge Luis Borges, Papa, com as Cataratas de Iguazu, com Villa la Angostura, com Mendoza e com a Cordilheira. São de lá os melhores alfajores e o melhor sorvete. E facturas e empanadas. E um dos melhores vinhos do mundo.

A Argentina não será a campeã, mas é o meu melhor destino.